O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) recebeu, em abril de 2023, um conjunto de pedidos de reenvio prejudicial enviados pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS) tendo por objeto a compatibilidade com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) de legislação nacional de enquadramento da busca e apreensão de emails realizadas pela Autoridade da Concorrência (AdC).
Desses pedidos resultaram três questões prejudiciais referentes à interpretação do artigo 7.º[1] da CDFUE, no contexto da legalidade da apreensão de mensagens de correio eletrónico de profissionais das empresas investigadas no processo principal em Portugal, efetuada no decurso de buscas realizadas nas instalações das mesmas no âmbito das investigações levadas a cabo pela AdC tendo por base suspeitas de infração às regras portuguesas em matéria de concorrência e aos artigos 101.º ou 102.º do TFUE,
Foram remetidas ao TJUE as seguintes questões prejudiciais:
Na sequênciadas Conclusões da Advogada-Geral Medina apresentadas em 20 de junho de 2024 no âmbito do processo IMI e.o. c. Autoridade da Concorrência (processos apensos C-258/23 a C-260/23), foi solicitado à mesma AG pelo Tribunal de Justiça (TJ) que, em sede de Conclusões complementares, aprofundasse uma das questões – a terceira – deixada em aberto.
Em concreto, nas Conclusões de 2024, considerou a AG que o artigo 7.° (”Respeito pela vida privada e familiar”) da CDFUE não se opunha à legislação de um Estado‑Membro (no caso em apreço, Portugal) no âmbito da qual, no contexto de uma investigação sobre uma alegada violação dos artigos 101.° ou 102.° TFUE, a autoridade nacional da concorrência procede à apreensão de mensagens de correio eletrónico cujo conteúdo está relacionado com o objeto da inspeção sem para tal dispor de uma autorização judicial prévia. Tal possibilidade, referiu ainda a AG Medina, pressupunha a existência de um enquadramento legal estrito dos poderes da autoridade nacional da concorrência, bem como a consagração de garantias adequadas e suficientes contra abusos e arbitrariedade dessa autoridade incluindo, nomeadamente, a possibilidade de uma fiscalização judicial ex post das medidas em causa.
A solicitação do TJ que levou à segunda pronúncia da AG, em sede das Conclusões complementares ontem publicadas, teve por base uma dúvida entretanto surgida, a saber: se na sequência de um acórdão proferido noutro caso (Landeck) se deveria também entender que nos processos apensos C-258/23 a C-260/23 seria de aplicar a exigência de controlo prévio judicial ou de uma autoridade administrativa independente, salvo casos de urgência devidamente justificados, como resultou do referido acórdão Landeck.
Por outras palavras, o TJ pretendia saber se o conteúdo do acórdão Landeck, entretanto proferido, alterava o teor das conclusões inicialmente proferidas pela AG Medina nos processos apensos em apreço, no sentido de a exigência da fiscalização prévia por um juiz ou uma entidade administrativa independente ser igualmente transponível para as investigações conduzidas em matéria de concorrência para identificar infrações aos artigos 101.° ou 102.° TFUE, em particular quando as mensagens de correio eletrónico que são objeto de apreensão pela autoridade nacional da concorrência, assim como os documentos resultantes dessas mensagens, contêm dados pessoais.
Nas conclusões agora publicadas, a AG refere que, para dar uma resposta útil aos pedidos de reenvio, a análise da questão deve não só ter por base o artigo 7.º da CDFUE, atinente ao respeito pela vida privada e familiar, mas também o artigo 8.º da mesma Carta, referente à proteção dos dados de carácter pessoal.
Entende a AG que, por um lado, estando em causa mensagens de correio eletrónico trocadas entre os administradores e os colaboradores de uma empresa e da sua correspondente documentação profissional, a mesma pode também conter dados pessoais, pelo que a sua apreensão constitui uma limitação ao exercício dos direitos conferidos pelo artigo 8.º da Carta.
Não obstante, assume a AG, estes direitos não têm carácter absoluto, sendo por isso possível a ingerência no direito fundamental à proteção dos dados pessoais, desde que respeitado o princípio da proporcionalidade, isto é, desde que a informação recolhida esteja circunscrita ao objeto da investigação conduzida pela autoridade nacional da concorrência.
Adicionalmente, entende a AG que a gravidade das condutas sob investigação e a necessidade de salvaguardar a concorrência no mercado interno sem que para tal exista outro mecanismo igualmente eficaz e menos intrusivo na identificação de práticas anticoncorrenciais, tal interferência na vida privada e nos dados pessoais afigura-se justificável e proporcional à importância do objetivo legítimo prosseguido pela autoridade nacional da concorrência.
Quanto a este ponto, em concreto, e aproximando-se da questão colocada pelo TJ, informa a AG que não poderiam ser aplicadas aos processos apensos em apreço as conclusões resultantes do Acórdão Landeck, atenta a natureza iminentemente pessoal dos dados em causa em Landeck (dados que informam sobre a biometria da pessoa em causa, a sua saúde, a sua vida ou a sua orientação sexual ou, ainda, a sua origem racial ou étnica), os quais correspondem a uma categoria especial de dados pessoais que não tem paralelo nos processos apensos em apreço.
Com efeito, na ótica da AG, nem os dados pessoais contidos nas mensagens de correio eletrónico de carácter profissional apreendidas no decurso de uma investigação conduzida por uma autoridade nacional da concorrência, nem as mensagens de correio eletrónico trocadas entre os administradores e os colaboradores de uma empresa ou a documentação profissional resultante das mesmas revelam dados passíveis de identificar os hábitos da vida quotidiana das pessoas em causa (pelo menos na mesma medida em que tal sucedia no caso Landeck). A AG conclui, assim, que a parte decisória do Acórdão Landeck não pode ser aplicada aos processos em apreço.
Ainda que considere que, no caso em apreço, a ingerência no direito fundamental à proteção dos dados pessoais gerada pelas atividades de busca e apreensão da correspondência possa eventualmente ser proporcional, só o será efetivamente se forem cumpridas determinadas garantias processuais, nomeadamente:
i) que a investigação esteja devidamente fundamentada em suspeitas razoáveis quanto à existência de uma violação das regras da concorrência previstas pelo Tratado;
ii) que sejam cumpridas as exigências de lealdade e de transparência que presidem ao tratamento dos dados;
iii) que seja respeitado o princípio da limitação da conservação e o princípio da integridade e da confidencialidade, devendo os dados pessoais recolhidos ser conservados num ambiente seguro; e
iv) que a recolha e o acesso aos mesmos, através da seleção dos documentos úteis à investigação, se realizem na presença dos representantes da empresa, e que lhes seja concedida a oportunidade de reanalisar todos os documentos provisórios destinados a ser juntos ao processo e apresentar reclamações contra a junção ao processo de documentos que contêm dados pessoais que (i) não são pertinentes para a investigação e, por outro, (ii) quando esses dados revistam um carácter particular ou sensível
A par destas garantias, entende a AG incumbir também às autoridades nacionais da concorrência, por força do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, possibilitar uma fiscalização jurisdicional ulterior quer durante, quer no termo do procedimento de investigação.
De modo semelhante ao que concluiu em junho, entende a AG que, em princípio, só será exigível uma autorização judiciária prévia no caso de apreensões de e-mails efetuadas no domicílio privado de uma pessoa ou para deduzir acusação penal contra uma pessoa singular. Contudo, ressalva a AG, o Direito da União permite que, caso seja essa a vontade dos Estados-Membros, estes possam incluir na sua legislação a exigência de autorização judicial prévia relativamente à apreensão de email no contexto de uma investigação levada a cabo por autoridades nacionais da concorrência.
Em consequência, na opinião da AG, a exigência da ordem jurídica nacional de mandado prévio emitido por juiz de instrução não entrará em conflito com as normas de Direito da União Europeia (em particular da CDFUE).
De todo o modo, importa realçar que (i) as Conclusões da AG não vinculam o TJ, o qual pode proferir uma decisão parcial ou totalmente divergente relativamente ao sentido das Conclusões e (ii) que a AG não considerou necessário entrar na análise da questão de saber se um mandado emitido pelo Ministério Público poderá ser considerado equivalente a um mandado judicial.
Em todo o caso, afigura-se que o acórdão que vier a ser proferido pelo TJ na sequência das Conclusões complementares da AG terá inevitavelmente impacto na delimitação dos limites aos poderes de investigação das autoridades nacionais da concorrência impostos pela proteção da vida privada e, concretamente no caso de Portugal, poderá conduzir à anulação das decisões da AdC e respetivas coimas aplicadas às empresas.
[1] Nos termos do artigo 7.º da Carta, "toda a pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e das suas comunicações".